Às vezes, eu tenho vontade de fazer um blog só sobre MPB (seja lá o que é que isso queira dizer)Daúde e Virgínia Rodrigues desenvolvem carreiras no exílio, mesmo morando no Brasil Brasileiras forasteirasPEDRO ALEXANDRE SANCHES
O exílio, às vezes, mora aqui dentro. Mulheres-sintomas da desagregação do mercado musical no Brasil, as baianas Daúde, 41, e Virgínia Rodrigues, 39, vivem a inusitada experiência de desenvolverem suas carreiras musicais no exílio, mesmo continuando a morar no Brasil.
Hoje, Daúde grava pelo selo britânico Real World, do músico Peter Gabriel. Rodrigues lançou seu terceiro CD só nos Estados Unidos, pela Deutsche Grammophone, a mais respeitada gravadora de música erudita do mundo.
Mulheres-bumerangue, só após o périplo chegarão ao Brasil -a EMI distribuirá Daúde aqui, já neste mês; a Universal tentará recolocar Rodrigues no mercado nacional em março próximo.
Após dois trabalhos pela gravadora independente Natasha, em 95 e 97, Daúde ficou sem contrato. Preparou um CD demo com quatro músicas, que mostrou em todas as gravadoras brasileiras, das grandes às pequenas.
"O que mais ouvi nos últimos dois anos, de todo mundo, é que o mercado está uma merda. Ninguém quer investir nada", conta Daúde, sem meios termos.
"Eu não sou uma merda, não fui eu que criei essa história. Fui investir meu dinheiro no meu trabalho." Concebeu e gravou por conta própria "Neguinha Te Amo", que Peter Gabriel acolheu sem fazer qualquer modificação.
Virgínia, por sua vez, permanece na mesma Natasha, co-dirigida pela empresária Paula Lavigne e orientada pelo padrinho musical Caetano Veloso.
"A gente nunca vendeu Virgínia no Brasil. Não só não vende como não emplaca aqui, infelizmente", afirma Lavigne, também sem meios termos.
Licenciado para a Deutsche Grammophone, o disco "Mares Profundos" já vendeu nos EUA 5.000 exemplares, segundo a outra proprietária da Natasha, Conceição Lopes. Rodrigues tem, entre seus fãs, nomes como Bill Clinton e Harrison Ford.
"Aqui no Brasil o pessoal gosta de música alegre. Virgínia tem voz triste, entristece as músicas", Conceição busca justificar.
Daúde, por seu turno, fala com certa estranheza da assimilação de sua música no exterior.
"As pessoas, mesmo as da gravadora, não têm idéia do que é a música brasileira. Disseram que minha música é viva, quente", afirma, ressaltando que gravou o disco no Brasil, antes de saber que ele acabaria num selo britânico de world music.
"Sou brasileira, tenho que ter meu disco nas lojas do Brasil. Não me sinto exilada, não fiz um disco para gringo, bossa nova, batuque, música de festa. Tenho outra história, negra e positiva", decreta, portando como uma de suas carteiras de identidade a recém-concluída pós-graduação em história da África.Daúde e Virgínia afrontam o exílio -delas e de outros Daúde conquista o auge de sua maturidade em "Neguinha Te Amo", trabalho profundamente brasileiro, mas destituído de qualquer traço provinciano, bairrista ou caipira.
Seu repertório transita pelo mundão com liberdade e desenvoltura, visitando desde clássicos da bossa ("Canto de Ossanha", de Baden Powell e Vinicius de Moraes) e do samba-soul ("Crioula", de Jorge Ben, que participa da releitura em eletrizante dueto) até a contemporaneidade de "Sans Dire Adieu" (de Moska, mas afrancesada) e da anti-racista "Uma Neguinha" (de Paulo Padilha).
O tratamento musical, elaborado por Daúde com o britânico Will Mowat, exala altos teores de ousadia. Não sente medo ou vergonha de nada, é brasileiro e forasteiro e sabe bem o que quer.
Sabendo, dá voz mansa e macia, interpretação abrasiva, coerência e coesão ao samba ancestral da marchinha carnavalesca "Alá-Lá-Ô", ao pagodinho de Aniceto do Império "Dora" ou à pós-tropicália black power "Ilê Ayê", que Gilberto Gil já cantou. Condensa.
Noutro pólo, Virgínia Rodrigues busca foco. Sob direção artística de Caetano Veloso, dedica "Mares Profundos" aos afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Exceção é "Lapinha", túmulo do samba de Elis Regina, escrita por Baden com o anti-tropicalista Paulo César Pinheiro.
Repetindo projeto independente lançado em 96 por Mônica Salmaso e Paulo Bellinati, Virgínia e Caetano amplificam a melancolia dos afro-sambas, que Nara Leão deixou pairando no ar pesado dos anos 60 e Mônica Salmaso já explicitava sete anos atrás.
O canto quase lírico, da moça pobre que integrava coro de igreja e hoje circula com liberdade apenas no Velho Mundo e nos EUA, veicula tristeza infinita, o que faz do disco uma experimento de difícil assimilação. Evapora.
No dueto de "Labareda", Caetano não facilita as coisas: ata-se ao canto triste da afilhada, passa a pertencer a ele, como Virgínia tem sempre pertencido a seus anseios de brasileiro-estrangeiro. A retração medrosa que Caetano costuma provocar vaza nela.
Encenando o estranho teatro de um Brasil pós-globalizado que o nomadismo lulista também empenha, os discos de Daúde e de Virgínia carecem da brecha para voltar ao Brasil natal. É que falam sobre exílio, ainda hoje, 34 anos após a expulsão de Caetano e Gil (e outros) do Brasil. O exílio é a tradição, mas as exiladas de hoje moram aqui ao lado. Interpretam sentimentos de exílio antigos, talvez hoje mais de outros que delas.
A roupa de identidade fraturada já não lhes cai tão bem. Em Virgínia, a crise se desenlaça em funda melancolia. Em Daúde, o vulcão parece prestes à erupção. E o Brasil se faz de surdo a ambas.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)